Calixto, o infame
Onde
se acompanha a odisseia de alguém que caiu sob a alçada das autoridades
psiquiátricas dos anos 30 do século vinte, na Lisboa do período entre guerras.
Um jovem adulto que foi apanhado na enxurrada das leucotomias que se traduziu
na glória controversa de um Prémio Nobel para Egas Moniz (1949), enquanto, para
os sujeitos-objetos experimentais, cobaias humanas da psicocirurgia, se
converteu em mutilações imprecisas e num sofrimento indescritível, longe dos
holofotes da fama ou de qualquer forma de compaixão.
1.
O santo e o outro
Rebuscando a memória das leituras daquele tempo fica a imagem de um homem que
pretende superar-se. Imaginamo-lo afetado pelas turbulências da época.
Lisboa entre guerras.
Poderiam os mais humildes viver melhor ou teriam de dobrar-se ao jugo dos ricos
e poderosos? Segundo alguns, sim, os mais humildes poderiam aspirar a viver
melhor, mas para tal não poderiam continuar na ignorância. Teriam de
transformar-se, adquirir conhecimentos, saber mais.
Poderiam estas tempestades de então desencadear vertigens na alma?
Certamente. O nosso homem - chamemos-lhe Calixto - estava de tal modo enredado
nessas reflexões que deu por ele a inscrever-se num curso de esperanto, uma vez
que saber era o mote para mudar de vida, não só a dele, mas a de toda a humanidade.
A língua franca dessa nova fraternidade aí estava, pronta para usar, saída da
mente de Zamenhof. Aprender a usá-la era um pressuposto para quem aspirava,
como ele, ao conhecimento transformador.
Tal como o cronista deve encontrar o tom próprio, o ritmo e a prosódia adequada
para manter atento o auditório e o leitor desperto, Calixto intuía que para
chegar aos saberes importantes era necessário adquirir as linguagens que os
exprimissem. As associações operárias encarregavam-se de organizar esse encontro
entre as gentes que queriam superar-se e os novos avatares da comunicação
universal.
Portanto, naquele anoitecer chuvoso de novembro, ali estava Calixto, meio
metido para dentro. Olhado daqui, não se percebe se dormita se cogita, tão
enleado ele está nele próprio, à espera do mestre de esperanto.
Saluton! Calixto. Kiel vi fartas?
Calixto, meio cá, meio lá, parecia-lhe ouvir o mestre a chegar e a
dirigir-se-lhe perguntando-lhe como estava.
Se não fosse de bom tom dizer apenas que sim, que tudo estava bem como é
esperado do ping-pong social, Calixto teria respondido que as coisas não vão lá
muito bem. Sobretudo depois do acidente de que foi vítima ali à rua de Santa
Marta quando foi atropelado por um automóvel. Perdeu os sentidos e retomou
consciência cerca de uma hora depois, numa cama de hospital.
Atingido no peito e na cabeça, além das escoriações menos graves nas pernas e
no braço direito, ficou com um zumbido permanente nos ouvidos e uma sonolência
que o assaltava mal se sentava, como era o caso naquele momento.
Quando me apercebi da sua
existência fiquei estarrecido. Pensei em muitas designações que se lhe
adaptavam facilmente. Cobaia, desde logo, por se ter tornado em toda a
plenitude um sujeito experimental. Depois, aquela dupla natureza de homem
intertextual. Até certo ponto ele é detetado no cruzamento dos textos
(relatórios, fichas e ensaios clínicos) e não propriamente em resultado do
exame de psiquiatras e neurologistas. A sua qualidade de homem em vias de
superação. Um homem que pensa o mundo, que se pensa a si próprio no mundo e que
supõe ter encontrado uma via para consegui-lo.
A Lisboa de 1935-36 na Europa efervescente, num mundo em que as vontades de
mudar se digladiavam. A guerra civil de Espanha, as diásporas, as perseguições
e os refugiados. O réquiem, ao fundo, a caminhar para o que haveria de ser os
horrores da guerra e do holocausto.
Há, portanto, um homem que decidiu aprender esperanto. E há, por detrás, um
cruzamento equivocado de seres e de vontades. Em que outra circunstância
poderia Calixto, o caixeiro de praça, casado e sindicalizado, encontrar-se com
os reputados psiquiatras e neurologistas, como veio a acontecer?
Na verdade, o texto (este texto) resulta da ação de autores e testemunhos, uns
mais fictícios do que outros, em tempos e planos diferenciados pela redação
atualizada. Num dos planos aconteceu como se a comunidade de biógrafos de Egas Moniz
tivesse reparado no incidente e concluído que, por não oferecer grande
interesse para os créditos humanistas do eminente clínico, a coisa poderia ou
não merecer um apontamento qualquer. Nem só a grandeza dos atos coloca os seus
autores em destaque. Às vezes uma pequena distração, um adormecimento dos
deuses, um vacilar da sorte podem constituir igualmente um bom pretexto para
plumitivos e plumitividades.
Ao complicar-se, a narrativa ganhava importância e espaço de realização. Aquele
dos autores que mais não fizera até aí do que coligir, copiar e adaptar
trechos, via agora uma oportunidade para dar um ar da sua graça.
Instalados nas suas rotinas, nos universos paralelos dos grupos sociais que
habitam, trabalham, consomem e se divertem longe da miséria, da indigência e da
promiscuidade, as elites produzem uma distância que tornará impossível o
diálogo entre pessoas e entidades que marcarão o destino de Calixto. Ele nunca
será para elas mais do que um acidente estatístico, irónico quando muito, mas
sem profundidade, espessura ou interesse.
De súbito, emergindo da
sonolência em que estivera submerso, Calixto levantou-se e dirigiu-se para o
meio do recinto, prontificando-se a substituir o mestre de esperanto. Seguiu-se
um desacato que veio a meter polícia, detenção e passagem pela esquadra para
identificação e demais formalidades.
Há os que, como Calixto, se colocam sempre na linha da frente para servir
grandes causas, ajudar a levar a mensagem dos grandes anúncios da esperança e
da verdade aos quatro cantos do mundo, com um entusiasmo contagiante e uma
dedicação sem limites. Seja o fim da guerra, a salvação da alma, a vinda do
salvador ou o poder dos sovietes. Sempre prontos para avançar e repetir a
palavra, levando-a aos confins do território. Para isso, além do entusiasmo é
necessário conhecer as linguagens, dominá-las, fazendo delas o instrumento
fundamental da comunicação. E se nos demorássemos um pouco na inquirição dos
motivos que levaram Calixto a aprender esperanto, não tardaríamos a verificar
que a habilitação para revelar a todos a mensagem, por cima de todas as
fronteiras e línguas menores, requeria essa competência. Chegado o momento de
entrar em ação, o falante de esperanto estaria em melhores condições do que
qualquer outro para cumprir a missão.
Andávamos então pelos anos de 1933. Calixto começou a ter um comportamento
estranho. Outros dizem que era uma questão de fases e que de vez em quando,
tinha formas de agir bizarras. Perdia interesse pelo que se passava cá fora,
punha-se a dançar, assobiava alto ou fazia coisas inesperadas. Porém, nessa
noite de setembro fora conduzido à esquadra da polícia e, no dia seguinte, dera
entrada no Manicómio Bombarda.
Esta forma sumária de um homem passar da liberdade para a clausura pode deixar
hoje muitas gentes boquiabertas, mas era mesmo assim. Alguém estava habilitado
a julgar e decidir se devíamos continuar em liberdade ou cairmos sob suspeita.
Como veremos adiante, não apenas a tenebrosa e gratuita suspeita podia
levar-nos aos subterrâneos da reclusão, como ainda podia fazer de nós eternos
pacientes psiquiátricos sem grande rigor no diagnóstico ou na resposta à terapêutica.
Está? [É o Manel? Daqui Zé Maria.] Estás bom? Dei com uma coisa que te deve
interessar. Sim. Não me disseste que andavas à volta da história da
psiquiatria? Sim. Precisamente. Um dos 20 pacientes que Egas Moniz operou em
1935/36, voltou a ser operado em 1947. Ao detetarem as cicatrizes da operação
anterior, conseguiram identificá-lo.
Que achas? Tem interesse para ti? Para quê? Então não achas graça a um caso que
tropeça em duas amostras?
Queres dar uma olhadela?
Talvez, afinal, a história não fosse tão interessante assim. Um homem por trás
da presença estatística em duas amostras. O tratamento não deu bom resultado da
primeira vez; porque é que haveria de ser diferente da segunda? Ou talvez não
tenha sido esse homem, mas um número qualquer, sem rosto, nem história, nem
humanidade. Melhor seria dizer: um homem desconsiderado, desumanizado? Nesses
universos do experimentalismo psiquiátrico exacerbado em que se subordina
praticamente tudo aos bons resultados, mesmo a verdade, mesmo a decência…
clínica.
Seria ele um homem que se preocupava em superar-se? Daqueles que gostariam de
saber mais, viajar, conhecer este e outros mundos? Daqueles que sonhavam dar
boas notícias em esperanto? Cristãos bolchevistas ou apóstolos de uma
anunciação qualquer?
Sempre achei curiosa a similaridade entre os seus passos e os de João Cidade,
canonizado São João de Deus, padroeiro das enfermarias psiquiátricas e dos
portadores de doença mental. Ambos de passagem por Granada, cada um a seu
tempo, é claro, foram acometidos por acessos desestabilizadores do sistema
nervoso e, em consequência, internados. Disse-se, do santo, que se terá tratado
de uma crise mística, enquanto que, de Calixto, o respetivo relatório clínico
reza simplesmente que foi internado num manicómio e teve alta, curado, oito
meses depois.
2.
O ciclo dos ossos
(parábola
das autorias, textos cruzados e nomes dos protagonistas)
Tenho de contar-vos duas ou três coisas sobre o autor do texto, que conheci
muito bem. Teve a ideia, escreveu grande parte das descrições, mas após seis
meses de trabalho irregular, começou a ter dúvidas sobre o valor daquilo tudo,
e desistiu. Como verão, aqui e acolá, Ludovico não resistia à tentação de
exagerar declarando-se fiel depositário de alguns objetos que teriam pertencido
a Calixto. Fotos, uma caixa com postais, cartas e outros escritos. Como se a
verdade não fosse suficientemente apelativa e fosse necessário apimentar a
narrativa com um saber profundo e pormenorizado sobre o homem a quem diz ter
ficado a dever este género de compensação. De infame a famoso, como dizem
alguns franceses.
Ao caminhar para os setenta, Ludovico anota a emergência de dores nas
articulações, dores motivadas pelas sequelas da escoliose que praticamente não
se fez sentir anteriormente, e nas pequenas artrites que agora se anunciam praticamente
todos os dias. Nesta fase, Ludovico reflete sobre este novo desajustamento e na
correspondência que se estabelece com outros desajustamentos psicológicos e
sociais.
Foi, portanto, já durante o ciclo dos ossos (reumático, gota e outras mazelas
desconfortáveis) que Ludovico se pôs a escrever acerca das desventuras de
Calixto. Pensando com a carne poderia talvez descortinar sensações que o ciclo
anterior não lhe permitira ver. Mas quando Moreira lhe perguntara algo sobre as
suas motivações ao fazê-lo, apenas fora capaz de balbuciar algo relacionado com
uma dívida que sentia para com as vítimas da leucotomia. A explicação parecera
algo confusa e Moreira resolveu deixar as coisas por ali, guardando, para
depois, os complementos. Havia, pelo menos, duas estranhezas na conversa de
Ludovico...Uma: admitir que por via da investigação que fizera poderia ter
ficado a dever algo a alguém; outra: ter apreendido o suficiente para
determinar que, se alguém devia algo a fosse quem fosse, pudesse ser ele a
estar de qualquer modo implicado.
O certo é que Ludovico vinha da Figueira da Foz, formado em Coimbra num
ambiente muito conservador, formalista, e à parte alguns devaneios da
adolescência, - um poema ou um conto na folha da freguesia; um manifesto
anónimo contra a guerra - não exercitara o estro fora dos territórios
padronizados do ensaio. Desse modo, o tempo começou a faltar-lhe para compor
uma história que fosse suficientemente interessante e atrativa.
Quando me deu parte de que ia desistir e me pediu que tentasse levar a carta a
Garcia, entregou-me um bilhete que afiançou ter sido escrito pelo próprio
Calixto.
Se quiser saber uma ou duas coisas sobre a minha vida, pois sei que está cheio
de curiosidade para saber como foi possível que um homem como eu possa ter sido
tão ignorado, ao mesmo tempo que me incluíam em duas amostras memoráveis da
história da psicocirurgia, leia então o que esse aprendiz de historiador,
Ludovico Semprun esboçou. Não adianta muito a parte em que ele fala das suas
motivações. Desinteressante e requentado. Mas por tique, e dever de ofício, ele
deteve-se no contraste entre o modo como Moniz e companhia valorizavam a sua
ciência e descartavam tão absolutamente as vidas dos que como eu por ali
passavam.
Pareceu-me, à primeira vista, que Ludovico estava a imaginar como seria uma
nota de Calixto se ele tivesse sabido que alguém viesse a interessar-se por ele,
ao ponto de querer contar a sua história. Uma desonestidade perdoável, pois,
que, já na fase do desespero, Ludovico não estava a conseguir visualizar o rumo
a tomar para levar a nau a bom porto. A tipificação dos escritores que anotou a
seguir, leva a crer que se enredara demasiado em considerações de produção e
estilo em vez de procurar vias de passagem para a sua novela.
Uns, menciona ele, escrevem até se esquecerem que existem. Escrevem como quem
respira, quase não pensando no que fazem, automaticamente, distraidamente,
enlevados pela luz da manhã, pelos sons que vêm da rua, pelas gentes que entram
e saem dos transportes públicos, dos cafés, cadenciadamente, como quem escreve
qualquer coisa, seja essa coisa o que for.
Os outros trazem uma ideia para o atelier. Experimentam assim e assado. E que
tal começar deste modo, como se a tempestade nos tivesse surpreendido a meio da
estepe? Dura e trabalhosamente, ensaiam, riscam, emendam e vão tentando um
croché que matutaram antes.
Quais são os narizes de santo que a história oferece? Primeiro o da ironia
inconsistente do historiador que se diverte com a boutade estatística “de
amostra em amostra até ao esquecimento final”. Há aqui uma conotação autonímica
com aquelas ironias acerca das inalcançáveis utopias: de derrota em derrota até
à vitória final, mas há também a coincidência de Calixto ter sido internado em
Granada, onde muitos anos antes João Cidade fora também recolhido na sequência
de uma crise mística. A circunstância de a cidade da Andaluzia ser a mesma não
retira a diferença de Calixto ter sido derrubado por uma demência qualquer,
enquanto o futuro São João de Deus fora acometido simplesmente por uma crise
mística que veio a fazer dele protetor dos doentes mentais e homem de elevada
espiritualidade.
Depois, há o homem que se queria superar.
O conto poderia concluir que ali chegado, Calixto fizera o que pudera, dera o
seu melhor, sentira-se melhorar e piorar, sempre sem lograr aquilo que parecera
orientá-lo desde a adolescência: superar-se. O homem que queria superar-se foi
submetido a um tratamento radical que, segundo os psiquiatras da época,
derrubava os pacientes fazendo-os regredir a estádios temporais anteriores no
desiderato de os redesenvolver a partir daí. [regressão sintónica]?
Como seria de esperar, Calixto é um homem de papel ou, mais exatamente, um ser
rabiscado a partir de textos. Que sentia ele exatamente antes de escandalizar o
povo que o acompanhava? Não sabemos. Podemos supor que o seu ser, em espera,
faria qualquer coisa que houvesse para fazer, e que deus, a cultura ou o acaso
atravessariam a (in)consciência de Calixto para desembocar no quotidiano, por
mais banais ou estapafúrdias que pudessem parecer. O tio Usulino do Manuel
Curado? João Cidade em Granada? deus falando pela boca de Cristo? Não se sabe e
não interessa. Acontece. Espera e acontecimento.
3. Vozes interiores
A voz interior de Calixto
ou, pelo menos, uma delas soprava-lhe: dança rapaz, segue a música,
bamboleia-te; se orientasse um curso de escrita criativa, deixaria essa pérola
de desvario...então, então, escrever não parece ser o fundamental. Ter algo
interessante a contar pode ser ainda mais importante.
Parte a mobília, empurra
quem se puser à tua frente, pragueja, grita, sai de casa, corre, corre até não
poderes mais. Tu não és daqui. Não te respeitam. Impõe-te. Marca o teu
território. Não cedas. Protesta. Foge. Parte. Vai.
Nas descrições que fazem
desses episódios chamam-lhes períodos de turbulência, acessos, grande agitação,
mas ninguém sabe ao certo que revelação é essa, que voz, que impulso o fez
aparentemente descarrilar, afastar-se, pôr-se a vibrar de modo tão distinto dos
outros.
A voz interior de
Ludovico segredava-lhe escreve. Conta a história desse homem crucificado,
vítima das crenças médicas do seu tempo. Será uma pena não chamar a atenção
para esse outro lado dos tratamentos que refletem as vozes interiores dos psiquiatras
e dos neurocirurgiões de então.
Como é que os encontros e
desencontros de tantas vozes interiores se entrechocam, sobrepõem, ordenam e
produzem este arrazoado dramático a que chamamos sociedade.
Uns ouvem vozes, nítidas
e identificadas, outros confessam intenções, dúvidas e tentações. Ninguém quer
deixar o mundo sossegado, com os rios a correrem simplesmente para o mar e as
estações a sucederem-se, as plantas a crescerem e as borboletas a saírem dos
casulos.
O que dizem as tuas vozes
interiores? São-te familiares? São amigas ou inimigas? Existem ou são
imaginação apenas? Aconselham-te a seres bom ou mau? Mandam-te amar ou
instigam-te a matar?
Tudo leva a crer que
Calixto não pensava muito nisso. Podemos agora chamar-lhes o que quisermos:
ideia forte, inspiração súbita, inclinação, ordem, exortação, grito. As vozes
do pensamento apresentam-se de forma inesperada. Canções, poemas, lengalengas,
orações, vai lá saber quem está a falar contigo e o que pretende deveras.
Para Ludovico, as vozes
diziam escreve, escreve a história desse deserdado do destino que quis
superar-se mas acabou varado por duas lobotomias no campo de batalha da
psiquiatria.
Já tinham contado a
Calixto que as vozes fazem-se sempre ouvir. O que pode melhorar ou piorar é a
importância que lhe damos. Em Granada e em Lisboa, no Telhal e no Manicómio
Bombarda, irmãos de infortúnio passaram-lhe a mensagem: depois de uma sessão de
eletrochoques, as vozes afastam-se, não desaparecem, mas ouvem-se mais ao
longe. Às vezes até deixamos de perceber o que estão a dizer. Dizem bem? Dizem
mal? Importa pouco. Importa menos. As vozes apagam-se com o nosso cansaço. Os
tratamentos extenuantes quase nos matam deixam-nos derreados, prostrados,
incapazes de perceber e muito menos de reagir às nossas vozes interiores.
Parece ser também muito
importante a ressonância das vozes. Se são insistentes e intensas marcam mais,
ecoam, regressam sempre; se são mais distantes confundem-se com outras,
tornam-se bruaá seguindo pelos caminhos do esquecimento.
Uma das vozes que
assombrava Calixto alertava-o para o tempo que estava a perder com médicos e
enfermeiros, as quebras no vencimento, as faltas ao trabalho, a situação
profissional que já fora tão feliz e promissora a resvalava agora, pouco a
pouco, para o caos. E depois, Calixto, como vão sobreviver tu e a tua mulher?
Acaba com essas mariquices e volta à praça. Este estado de coisas não pode
prolongar-se muito mais.
No Boletim Clínico da
Associação dos Empregados de Comércio que Ludovico diz ter lido, terão
registado que teve alta a 19 de setembro e prosseguiu fazendo sessões de
fisioterapia.
Apesar do alarme que as
suas vozes interiores faziam soar, Calixto parecia agora poder voltar a
dedicar-se ao protestantismo e ao esperanto, regressar ao trabalho e voltar a
ter mão na sua vida. As vozes interiores que o impulsionavam pareciam poder
coabitar; as que o alertavam para os perigos, fraquezas e ofensas tinham
baixado de tom.
Nada que o bromural e uns
banhos quentes não fossem capazes de debelar.
4. Má sorte
Calixto estava talhado
para não ter sorte. Voltou a ser atropelado e a gastar o seu tempo com
fisioterapias e internamentos. A venda de calçado continuava; outros vendedores
circulavam entre São João da Madeira e Lisboa. Não esperavam por ele. A mulher
e os filhos aguardavam que se pusesse melhor. Uma situação do arco da velha.
Imaginem que aquilo a que
chamamos despropósitos (pôr-se subitamente a dançar, a cantar ou a assobiar)
são deslizes do estado de vigília para uma semi-sonolência em que Calixto age
aos nossos olhos como se estivesse acordado, mas, de facto, está a sonhar.
Discurso incongruente, gestos e tiques estereotipados, resistência violenta às
contrariedades.
Durante a madrugada chora
e canta alternadamente; levanta-se e deita-se; tenta sair da enfermaria e por
isso é frequentemente confinado ao colete a que popularmente chamavam camisa de
forças. Ainda assim remexe-se, empurra a roupa da cama para o chão, solta
impropérios e grunhidos. Onde estiver Calixto está o reino do desassossego.
Mas Calixto acorda e por
vezes parece um outro homem. Razoável, racional e estável. Na consulta,
mostra-se consciente da sua situação, guarda memória dos factos marcantes da
sua vida, lugares, coisas, distâncias e demoras. Este é o Calixto desperto,
acordado para os pensamentos que produz, aquietando as suas vozes interiores,
respondendo com ironia a médicos e enfermeiros.
Ludovico anotou algures
que Calixto tentava compreender a sua doença e concluira que se tratava de algo
que não era permanente. Qualquer coisa que me dá e vai por aí fora. Estou a
dormir ou estou acordado? Isto é o tempo cru ou estamos a sonhar acordados?
Talvez as coisas assim se pudessem simplificar. Acorda Calixto! Estás a dar
espetáculo. Não dizes coisa com coisa. Comporta-te. Mas não dá. Se está a dormir
acordado, os sonhos que está a sonhar estão blindados. Não dá acordo de si.
Amanhã, quando acordar, pode estar efetivamente desperto, falar da mulher e dos
filhos, lamentar o tempo que está aqui a perder, pensar no escritório, na venda
de calçado, e nas grandes causas do protestantismo e do esperanto.
Mas como Calixto estava
calhado para não ter sorte, em janeiro de 1936, por indicação do psiquiatra do
Manicómio Bombarda, dará entrada no Serviço de Neurologia de Santa Marta para
ser operado. Foi a sua primeira leucotomia. Para a equipa de Egas Moniz foi um
dos vinte casos que entraram na literatura da especialidade nesse mesmo verão,
num livro dado à estampa por uma editora de Paris.
Calixto regressa ao
Manicómio Bombarda, após a leucotomia, em meados de janeiro. Às manias de
dançar, cantar e arrastar móveis somam-se agora as do repouso ereto (mesmo
rodeado de gentes, senta-se muito direito, cabeça erguida, fecha os olhos e
fica longo tempo imóvel naquela posição); e a da continência militar (sem razão
aparente, detém-se, leva a mão direita à altura da testa, e perfila-se).
Solicita uma saída
precária. Explica que, como a doença dele não é permanente, esta pode ser uma
boa oportunidade para ir a casa por alguns dias. A condição de
institucionalizado abate-se finalmente sobre ele. Duvida que esteja curado.
Quer que, se tiver de voltar a ser internado, tudo seja simplificado. Em
tempos, um enfermeiro acompanhou-o durante a sua saída precária. Agora tal não
será necessário, mas ainda assim quer deixar tudo preparado. Não fala das suas
causas, nem do esperanto, nem do protestantismo. Claro que se o assunto surgir
em conversa com o médico, lá fica registado que sim, que se lembra
perfeitamente dessas coisas, da mulher e dos filhos, dos endereços do seu escritório
e dos clientes. Mas parece que coisas mais práticas lhe ocupam a atenção.
Diz claramente que se as
coisas correrem mal quer ter a via de regresso desimpedida, de modo a regressar
sem problemas ou atardamentos. Admite que aquele vai ser um território a que
não poderá escapar por muito tempo. E assim será. Em vez da alta que em tempos
ambicionou, contenta-se com uma licença.
Ludovico diz ter
recolhido um testemunho em finais de março segundo o qual se lhe ouvira dizer:
Agora sinto-me bem. Estive variado. Mas agora penso que já sou capaz de ir
trabalhar na praça.
Lembra-se de ter estado
em Granada, na secção dos dementes, e de ter saído curado, sem qualquer
interferência da família.
É-lhe finalmente
concedida a licença de ensaio no final de março. Em meados de abril está de
volta, para se aconselhar acerca de um processo judicial que lhe foi movido por
ter faltado à inspeção militar. Melhorou o aspeto e ganhou peso.
No final de maio dão-lhe
alta. Alta a esperança, grandes a tristeza e o receio, como a esposa relata,
segundo Ludovico, no seu grupo social, tanto tempo sem trabalhar e o tamanho do
estigma que carrega só pode trazer dívidas, carências e desventuras. Quando se
perde o trabalho e não se tem outros rendimentos, o poder de uma pessoa falece
por inteiro.
Calixto, com esta alta, é
devolvido a um mundo que deixou de reconhecê-lo.
5. As vozes interiores
dos psiquiatras
Meu deus que diagnósticos
são estes? Será que nos estamos a equivocar? Terá razão o Zbigniew? Não será a
psiquiatria mais do que uma ideologia tecnicizada? Estará Calixto a deslizar
para uma forma de esquizofrenia? Terá alucinações? Se ao menos nos pudesse
explicar o que precede o click que o faz passar do modo normal para o regime
perturbado das grandes tempestades emocionais. Que sabemos nós destes sopros,
baforadas, acessos. Às vezes conversamos uns com os outros sobre a volatilidade
dos nossos prognósticos, o irrisório das nossas terapêuticas, sobretudo os
chamados tratamentos de último recurso. Quantos de nós olhámos com desconfiança
e incredulidade para a leucotomia e seus resultados.
Que sabemos nós da
tristeza que pode levar ao suicídio ou ao suicídio privativo dos que fingem
continuar a viver, mas estão a chorar lágrimas de pedra para dentro. Imagem
poética do filho de um psiquiatra que era, ao tempo, diretor clínico do
Hospital Júlio de Matos.
Mas deveríamos nós ser
contra a leucotomia só por não estarmos de acordo com os fundamentos que eram
apresentados? ou por nos parecer que os resultados eram demasiado apimentados?
Ilídio escreverá, anos
mais tarde, um artigo acerca do que testemunhou ao acompanhar e avaliar casos
como o de Calixto. Recorda-se que quer ele quer muitos dos seus colegas não
deram muito crédito a uma operação que consistia em destruir tecido nervoso com
injeções de álcool absoluto. Pareceu-lhe bastante bárbaro e com propósitos
incertos. Não entrou nesse tipo de pormenores no artigo que publicou.
Lembrava-se perfeitamente de Calixto e das conversas que tivera com ele.
Finalmente Calixto fora
diagnosticado com uma esquizofrenia na forma catatónica e melhorado da agitação
psicomotora. Ora, da agitação, Calixto melhorava ciclicamente; da forma
catatónica da esquizofrenia pouco se sabia…
Amigos?
É claro que no hospital
psiquiátrico não se forjam relações como na tropa ou no trabalho. Mas Agostinho
conhecera Calixto na Casa de Saúde do Telhal e voltara a encontrá-lo em
Rilhafoles. Por coincidência ouvira também algumas réstias das conversas que
Calixto mantivera com um irmão de São João de Deus, no Telhal; com um
psiquiatra que lhe pareceu ser o próprio diretor do Manicómio Bombarda e com o
próprio chefe do serviço de neurologia de Santa Marta, alguns dias após a
leucotomia que lá lhe ministraram. Pois sim, o olhar desconfiado, a suspeita de
que podia tratar-se de pessoal do próprio hospital ou mesmo de um familiar de
um alienado em visita, tornou difícil o contacto. Apesar disso, Agostinho
contou a Ludovico que conseguira chegar à fala com Calixto em duas ocasiões,
depois de muito o observar e de se informar sobre ele.
O frade de São João de
Deus, em conciliábulo raro com Calixto concedera que quanto às indulgências
Calixto poderia ter uma certa razão. A sua visão reformista da igreja bem que
podia ser subscrita por eles, Irmãos de São João de Deus, ascetas e austeros,
afastados dos mais espaventosos luxos da Santa Sé. Olhai o que corre debaixo do
Sol. Tudo é vaidade e tempo perdido. Apesar de Calixto não ser um entusiasta do
Eclesiastes e de uma vez por outra ostentar a sua vaidadezinha, entendia-se bem
com o espírito pastoral e as devoções dos irmãos do Telhal. Chegara em hora
aziaga; partira em tempo melhor.
Já com os psiquiatras do
Manicómio Bombarda e com os médicos de Santa Marta, Calixto foi um pouco mais
vaidoso, alardeando um conhecimento de línguas estrangeiras (francês, inglês e
castelhano) para além do esperanto de que muitos lhe gabavam a mestria. Mesmo
quando se encontrava mais calmo e controlado, tratava os seus interlocutores
sempre com aquela ironia desdenhosa destinada a colocá-lo num plano superior,
humilhado naquele lugar, como quem diz, o meu mundo não é deste reino. O homem
quis superar-se, mas a vida trocou-lhe as voltas.
Mais tarde, Calixto será
transferido para o Hospital Júlio de Matos, em ciclos de melhorias e piorias
que se repetiram após a primeira leucotomia que o deixou praticamente na mesma,
para pior. No entra e sai que passou a ser o seu destino terapêutico, acabou
por ser encaminhado, em 1948, para mais uma lobotomia (mais uma) de que não se
percebe bem a indicação, mas era assim naquele tempo, havia muitas lobotomias a
fazer e a coincidência de Calixto já contar com uma outra no cardápio, não
queria dizer nada, tendo em conta, ainda por cima, que a primeira fora sui
generis, a álcool, vejam bem.
Olha as cicatrizes. Este
já foi operado antes. Procura no processo clínico. É verdade. Cá está. Pertence
ao primeiro conjunto. Ope lá.
Às vezes, Calixto dizia-o
com alguma graça: para me curarem puseram-me mais uma doença. Referia-se à
malarioterapia que consistia na inoculação de plasmódio extraído do sangue de
doentes infetados com malária para que as febres altas que se seguiam pudessem
eliminar as espiroquetas da sífilis evitando que o paciente fosse desta para
melhor. Assim era, de facto. Apesar de Calixto não ter contraído a sífilis,
havia uma mal definida esperança de que aquele tratamento que desencadeava
febres altas, pudesse fazer algum bem. Sabe-se lá. Para doenças misteriosas e
descontroladas, tratamentos desencaminhados, e vamos lá ver no que dá.
E assim foi. A partir
daquela altura, Calixto passou a ser acompanhado por um paludismo que o
prostrava, e as crises cíclicas da malária vieram juntar-se às apoquentações
que o inundavam. Andar o mundo às avessas já é o que é, mas então com febrões
de derrubar elefantes façam lá o favor de se afigurar.
Depois as coisas
pioraram. Calixto passou a ter quase quotidianamente, e às vezes mais do que
uma vez por dia, ataques epiléticos, brutais e arrasadores que o deixavam prostrado
por horas a fio. Nos anos seguintes, os enfermeiros descreveram-no em gatismo,
arrastando-se pela enfermaria, rasgando lençóis e a própria roupa do corpo,
chorando ou cantando, proferindo frases ininteligíveis pelo meio, perdido,
aflito, afundado em sentimentos avassaladores.
Na Calçada da Tapada, à
Ajuda, a casa que foi dele guarda num canto da despensa os seus haveres, caixas
de sapatos tornadas arquivos, contendo cartas, receitas, bulas de medicamentos.
Uma bíblia, sebentas de esperanto, recortes de jornais, bilhetes-postais e
catálogos de calçado de São João da Madeira.
Ninguém sabe que vida vai
viver ou de que morte vai morrer, mas agora é diferente. Começa-se a divisar na
linha do horizonte algo muito semelhante a um destino. O destino de um homem
que queria superar-se, levar a boa nova aos outros, viajar, ver e partilhar com
outros as bem-aventuranças de um mundo efervescente, e acabou engolido pelo
lado escuro da terra, perdendo-se em vez de encontrar um caminho para cumprir o
que supunha ser a sua missão.
Calixto convenceu-se de
que poderia melhorar o mundo libertando os homens da visão única, superando a
solidão dos pensamentos fechados em torno da tradição indiscutida. Segundo ele,
havia mais mundo para além dos mundos pequeninos de cada um de nós. O olhar
solto seria o instrumento; o esperanto seria a ponte; o livre exame, a condição
de base.
Não sabemos se se enganou
ou não.
Em fevereiro de 1964
deixou-nos.
O somnifene perdeu
eficácia para debelar as insónias; os eletrochoques foram deixando de surtir
efeito; e a ergoterapia não conseguia cativá-lo, nem no corte e ajuntamento da
lenha, nem no papel. E as duas leucotomias (uma a álcool, outra superior)
deixaram-lhe, pelo menos, cicatrizes visíveis dentro e fora da cabeça sendo um
dó de alma compreender o que lhe fizeram de facto.
Aí está. Nem sempre acaba
bem o que começa com tanta esperança e boa vontade.
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