Calixto, o infame

 

Onde se acompanha a odisseia de alguém que caiu sob a alçada das autoridades psiquiátricas dos anos 30 do século vinte, na Lisboa do período entre guerras. Um jovem adulto que foi apanhado na enxurrada das leucotomias que se traduziu na glória controversa de um Prémio Nobel para Egas Moniz (1949), enquanto, para os sujeitos-objetos experimentais, cobaias humanas da psicocirurgia, se converteu em mutilações imprecisas e num sofrimento indescritível, longe dos holofotes da fama ou de qualquer forma de compaixão.

 

 

 

1.    O santo e o outro


Rebuscando a memória das leituras daquele tempo fica a imagem de um homem que pretende superar-se. Imaginamo-lo afetado pelas turbulências da época.

Lisboa entre guerras. Poderiam os mais humildes viver melhor ou teriam de dobrar-se ao jugo dos ricos e poderosos? Segundo alguns, sim, os mais humildes poderiam aspirar a viver melhor, mas para tal não poderiam continuar na ignorância. Teriam de transformar-se, adquirir conhecimentos, saber mais.
Poderiam estas tempestades de então desencadear vertigens na alma? Certamente. O nosso homem - chamemos-lhe Calixto - estava de tal modo enredado nessas reflexões que deu por ele a inscrever-se num curso de esperanto, uma vez que saber era o mote para mudar de vida, não só a dele, mas a de toda a humanidade. A língua franca dessa nova fraternidade aí estava, pronta para usar, saída da mente de Zamenhof. Aprender a usá-la era um pressuposto para quem aspirava, como ele, ao conhecimento transformador.


Tal como o cronista deve encontrar o tom próprio, o ritmo e a prosódia adequada para manter atento o auditório e o leitor desperto, Calixto intuía que para chegar aos saberes importantes era necessário adquirir as linguagens que os exprimissem. As associações operárias encarregavam-se de organizar esse encontro entre as gentes que queriam superar-se e os novos avatares da comunicação universal.


Portanto, naquele anoitecer chuvoso de novembro, ali estava Calixto, meio metido para dentro. Olhado daqui, não se percebe se dormita se cogita, tão enleado ele está nele próprio, à espera do mestre de esperanto.


Saluton! Calixto. Kiel vi fartas?


Calixto, meio cá, meio lá, parecia-lhe ouvir o mestre a chegar e a dirigir-se-lhe perguntando-lhe como estava.


Se não fosse de bom tom dizer apenas que sim, que tudo estava bem como é esperado do ping-pong social, Calixto teria respondido que as coisas não vão lá muito bem. Sobretudo depois do acidente de que foi vítima ali à rua de Santa Marta quando foi atropelado por um automóvel. Perdeu os sentidos e retomou consciência cerca de uma hora depois, numa cama de hospital.
Atingido no peito e na cabeça, além das escoriações menos graves nas pernas e no braço direito, ficou com um zumbido permanente nos ouvidos e uma sonolência que o assaltava mal se sentava, como era o caso naquele momento.

 

Quando me apercebi da sua existência fiquei estarrecido. Pensei em muitas designações que se lhe adaptavam facilmente. Cobaia, desde logo, por se ter tornado em toda a plenitude um sujeito experimental. Depois, aquela dupla natureza de homem intertextual. Até certo ponto ele é detetado no cruzamento dos textos (relatórios, fichas e ensaios clínicos) e não propriamente em resultado do exame de psiquiatras e neurologistas. A sua qualidade de homem em vias de superação. Um homem que pensa o mundo, que se pensa a si próprio no mundo e que supõe ter encontrado uma via para consegui-lo.


A Lisboa de 1935-36 na Europa efervescente, num mundo em que as vontades de mudar se digladiavam. A guerra civil de Espanha, as diásporas, as perseguições e os refugiados. O réquiem, ao fundo, a caminhar para o que haveria de ser os horrores da guerra e do holocausto.


Há, portanto, um homem que decidiu aprender esperanto. E há, por detrás, um cruzamento equivocado de seres e de vontades. Em que outra circunstância poderia Calixto, o caixeiro de praça, casado e sindicalizado, encontrar-se com os reputados psiquiatras e neurologistas, como veio a acontecer?


Na verdade, o texto (este texto) resulta da ação de autores e testemunhos, uns mais fictícios do que outros, em tempos e planos diferenciados pela redação atualizada. Num dos planos aconteceu como se a comunidade de biógrafos de Egas Moniz tivesse reparado no incidente e concluído que, por não oferecer grande interesse para os créditos humanistas do eminente clínico, a coisa poderia ou não merecer um apontamento qualquer. Nem só a grandeza dos atos coloca os seus autores em destaque. Às vezes uma pequena distração, um adormecimento dos deuses, um vacilar da sorte podem constituir igualmente um bom pretexto para plumitivos e plumitividades.


Ao complicar-se, a narrativa ganhava importância e espaço de realização. Aquele dos autores que mais não fizera até aí do que coligir, copiar e adaptar trechos, via agora uma oportunidade para dar um ar da sua graça.


Instalados nas suas rotinas, nos universos paralelos dos grupos sociais que habitam, trabalham, consomem e se divertem longe da miséria, da indigência e da promiscuidade, as elites produzem uma distância que tornará impossível o diálogo entre pessoas e entidades que marcarão o destino de Calixto. Ele nunca será para elas mais do que um acidente estatístico, irónico quando muito, mas sem profundidade, espessura ou interesse.

 

De súbito, emergindo da sonolência em que estivera submerso, Calixto levantou-se e dirigiu-se para o meio do recinto, prontificando-se a substituir o mestre de esperanto. Seguiu-se um desacato que veio a meter polícia, detenção e passagem pela esquadra para identificação e demais formalidades.


Há os que, como Calixto, se colocam sempre na linha da frente para servir grandes causas, ajudar a levar a mensagem dos grandes anúncios da esperança e da verdade aos quatro cantos do mundo, com um entusiasmo contagiante e uma dedicação sem limites. Seja o fim da guerra, a salvação da alma, a vinda do salvador ou o poder dos sovietes. Sempre prontos para avançar e repetir a palavra, levando-a aos confins do território. Para isso, além do entusiasmo é necessário conhecer as linguagens, dominá-las, fazendo delas o instrumento fundamental da comunicação. E se nos demorássemos um pouco na inquirição dos motivos que levaram Calixto a aprender esperanto, não tardaríamos a verificar que a habilitação para revelar a todos a mensagem, por cima de todas as fronteiras e línguas menores, requeria essa competência. Chegado o momento de entrar em ação, o falante de esperanto estaria em melhores condições do que qualquer outro para cumprir a missão.


Andávamos então pelos anos de 1933. Calixto começou a ter um comportamento estranho. Outros dizem que era uma questão de fases e que de vez em quando, tinha formas de agir bizarras. Perdia interesse pelo que se passava cá fora, punha-se a dançar, assobiava alto ou fazia coisas inesperadas. Porém, nessa noite de setembro fora conduzido à esquadra da polícia e, no dia seguinte, dera entrada no Manicómio Bombarda.


Esta forma sumária de um homem passar da liberdade para a clausura pode deixar hoje muitas gentes boquiabertas, mas era mesmo assim. Alguém estava habilitado a julgar e decidir se devíamos continuar em liberdade ou cairmos sob suspeita.

Como veremos adiante, não apenas a tenebrosa e gratuita suspeita podia levar-nos aos subterrâneos da reclusão, como ainda podia fazer de nós eternos pacientes psiquiátricos sem grande rigor no diagnóstico ou na resposta à terapêutica.


Está? [É o Manel? Daqui Zé Maria.] Estás bom? Dei com uma coisa que te deve interessar. Sim. Não me disseste que andavas à volta da história da psiquiatria? Sim. Precisamente. Um dos 20 pacientes que Egas Moniz operou em 1935/36, voltou a ser operado em 1947. Ao detetarem as cicatrizes da operação anterior, conseguiram identificá-lo.


Que achas? Tem interesse para ti? Para quê? Então não achas graça a um caso que tropeça em duas amostras?

Queres dar uma olhadela?


Talvez, afinal, a história não fosse tão interessante assim. Um homem por trás da presença estatística em duas amostras. O tratamento não deu bom resultado da primeira vez; porque é que haveria de ser diferente da segunda? Ou talvez não tenha sido esse homem, mas um número qualquer, sem rosto, nem história, nem humanidade. Melhor seria dizer: um homem desconsiderado, desumanizado? Nesses universos do experimentalismo psiquiátrico exacerbado em que se subordina praticamente tudo aos bons resultados, mesmo a verdade, mesmo a decência… clínica.


Seria ele um homem que se preocupava em superar-se? Daqueles que gostariam de saber mais, viajar, conhecer este e outros mundos? Daqueles que sonhavam dar boas notícias em esperanto? Cristãos bolchevistas ou apóstolos de uma anunciação qualquer?


Sempre achei curiosa a similaridade entre os seus passos e os de João Cidade, canonizado São João de Deus, padroeiro das enfermarias psiquiátricas e dos portadores de doença mental. Ambos de passagem por Granada, cada um a seu tempo, é claro, foram acometidos por acessos desestabilizadores do sistema nervoso e, em consequência, internados. Disse-se, do santo, que se terá tratado de uma crise mística, enquanto que, de Calixto, o respetivo relatório clínico reza simplesmente que foi internado num manicómio e teve alta, curado, oito meses depois.

 

 

2.    O ciclo dos ossos

 

(parábola das autorias, textos cruzados e nomes dos protagonistas)

Tenho de contar-vos duas ou três coisas sobre o autor do texto, que conheci muito bem. Teve a ideia, escreveu grande parte das descrições, mas após seis meses de trabalho irregular, começou a ter dúvidas sobre o valor daquilo tudo, e desistiu. Como verão, aqui e acolá, Ludovico não resistia à tentação de exagerar declarando-se fiel depositário de alguns objetos que teriam pertencido a Calixto. Fotos, uma caixa com postais, cartas e outros escritos. Como se a verdade não fosse suficientemente apelativa e fosse necessário apimentar a narrativa com um saber profundo e pormenorizado sobre o homem a quem diz ter ficado a dever este género de compensação. De infame a famoso, como dizem alguns franceses.


Ao caminhar para os setenta, Ludovico anota a emergência de dores nas articulações, dores motivadas pelas sequelas da escoliose que praticamente não se fez sentir anteriormente, e nas pequenas artrites que agora se anunciam praticamente todos os dias. Nesta fase, Ludovico reflete sobre este novo desajustamento e na correspondência que se estabelece com outros desajustamentos psicológicos e sociais.


Foi, portanto, já durante o ciclo dos ossos (reumático, gota e outras mazelas desconfortáveis) que Ludovico se pôs a escrever acerca das desventuras de Calixto. Pensando com a carne poderia talvez descortinar sensações que o ciclo anterior não lhe permitira ver. Mas quando Moreira lhe perguntara algo sobre as suas motivações ao fazê-lo, apenas fora capaz de balbuciar algo relacionado com uma dívida que sentia para com as vítimas da leucotomia. A explicação parecera algo confusa e Moreira resolveu deixar as coisas por ali, guardando, para depois, os complementos. Havia, pelo menos, duas estranhezas na conversa de Ludovico...Uma: admitir que por via da investigação que fizera poderia ter ficado a dever algo a alguém; outra: ter apreendido o suficiente para determinar que, se alguém devia algo a fosse quem fosse, pudesse ser ele a estar de qualquer modo implicado.
O certo é que Ludovico vinha da Figueira da Foz, formado em Coimbra num ambiente muito conservador, formalista, e à parte alguns devaneios da adolescência, - um poema ou um conto na folha da freguesia; um manifesto anónimo contra a guerra - não exercitara o estro fora dos territórios padronizados do ensaio. Desse modo, o tempo começou a faltar-lhe para compor uma história que fosse suficientemente interessante e atrativa.
Quando me deu parte de que ia desistir e me pediu que tentasse levar a carta a Garcia, entregou-me um bilhete que afiançou ter sido escrito pelo próprio Calixto.


Se quiser saber uma ou duas coisas sobre a minha vida, pois sei que está cheio de curiosidade para saber como foi possível que um homem como eu possa ter sido tão ignorado, ao mesmo tempo que me incluíam em duas amostras memoráveis da história da psicocirurgia, leia então o que esse aprendiz de historiador, Ludovico Semprun esboçou. Não adianta muito a parte em que ele fala das suas motivações. Desinteressante e requentado. Mas por tique, e dever de ofício, ele deteve-se no contraste entre o modo como Moniz e companhia valorizavam a sua ciência e descartavam tão absolutamente as vidas dos que como eu por ali passavam.



Pareceu-me, à primeira vista, que Ludovico estava a imaginar como seria uma nota de Calixto se ele tivesse sabido que alguém viesse a interessar-se por ele, ao ponto de querer contar a sua história. Uma desonestidade perdoável, pois, que, já na fase do desespero, Ludovico não estava a conseguir visualizar o rumo a tomar para levar a nau a bom porto. A tipificação dos escritores que anotou a seguir, leva a crer que se enredara demasiado em considerações de produção e estilo em vez de procurar vias de passagem para a sua novela.


Uns, menciona ele, escrevem até se esquecerem que existem. Escrevem como quem respira, quase não pensando no que fazem, automaticamente, distraidamente, enlevados pela luz da manhã, pelos sons que vêm da rua, pelas gentes que entram e saem dos transportes públicos, dos cafés, cadenciadamente, como quem escreve qualquer coisa, seja essa coisa o que for.

Os outros trazem uma ideia para o atelier. Experimentam assim e assado. E que tal começar deste modo, como se a tempestade nos tivesse surpreendido a meio da estepe? Dura e trabalhosamente, ensaiam, riscam, emendam e vão tentando um croché que matutaram antes.
Quais são os narizes de santo que a história oferece? Primeiro o da ironia inconsistente do historiador que se diverte com a boutade estatística “de amostra em amostra até ao esquecimento final”. Há aqui uma conotação autonímica com aquelas ironias acerca das inalcançáveis utopias: de derrota em derrota até à vitória final, mas há também a coincidência de Calixto ter sido internado em Granada, onde muitos anos antes João Cidade fora também recolhido na sequência de uma crise mística. A circunstância de a cidade da Andaluzia ser a mesma não retira a diferença de Calixto ter sido derrubado por uma demência qualquer, enquanto o futuro São João de Deus fora acometido simplesmente por uma crise mística que veio a fazer dele protetor dos doentes mentais e homem de elevada espiritualidade.

Depois, há o homem que se queria superar.



O conto poderia concluir que ali chegado, Calixto fizera o que pudera, dera o seu melhor, sentira-se melhorar e piorar, sempre sem lograr aquilo que parecera orientá-lo desde a adolescência: superar-se. O homem que queria superar-se foi submetido a um tratamento radical que, segundo os psiquiatras da época, derrubava os pacientes fazendo-os regredir a estádios temporais anteriores no desiderato de os redesenvolver a partir daí. [regressão sintónica]?


Como seria de esperar, Calixto é um homem de papel ou, mais exatamente, um ser rabiscado a partir de textos. Que sentia ele exatamente antes de escandalizar o povo que o acompanhava? Não sabemos. Podemos supor que o seu ser, em espera, faria qualquer coisa que houvesse para fazer, e que deus, a cultura ou o acaso atravessariam a (in)consciência de Calixto para desembocar no quotidiano, por mais banais ou estapafúrdias que pudessem parecer. O tio Usulino do Manuel Curado? João Cidade em Granada? deus falando pela boca de Cristo? Não se sabe e não interessa. Acontece. Espera e acontecimento.

 

 

3. Vozes interiores

 

A voz interior de Calixto ou, pelo menos, uma delas soprava-lhe: dança rapaz, segue a música, bamboleia-te; se orientasse um curso de escrita criativa, deixaria essa pérola de desvario...então, então, escrever não parece ser o fundamental. Ter algo interessante a contar pode ser ainda mais importante.

Parte a mobília, empurra quem se puser à tua frente, pragueja, grita, sai de casa, corre, corre até não poderes mais. Tu não és daqui. Não te respeitam. Impõe-te. Marca o teu território. Não cedas. Protesta. Foge. Parte. Vai.

Nas descrições que fazem desses episódios chamam-lhes períodos de turbulência, acessos, grande agitação, mas ninguém sabe ao certo que revelação é essa, que voz, que impulso o fez aparentemente descarrilar, afastar-se, pôr-se a vibrar de modo tão distinto dos outros.

A voz interior de Ludovico segredava-lhe escreve. Conta a história desse homem crucificado, vítima das crenças médicas do seu tempo. Será uma pena não chamar a atenção para esse outro lado dos tratamentos que refletem as vozes interiores dos psiquiatras e dos neurocirurgiões de então.

Como é que os encontros e desencontros de tantas vozes interiores se entrechocam, sobrepõem, ordenam e produzem este arrazoado dramático a que chamamos sociedade.

Uns ouvem vozes, nítidas e identificadas, outros confessam intenções, dúvidas e tentações. Ninguém quer deixar o mundo sossegado, com os rios a correrem simplesmente para o mar e as estações a sucederem-se, as plantas a crescerem e as borboletas a saírem dos casulos.

O que dizem as tuas vozes interiores? São-te familiares? São amigas ou inimigas? Existem ou são imaginação apenas? Aconselham-te a seres bom ou mau? Mandam-te amar ou instigam-te a matar?

Tudo leva a crer que Calixto não pensava muito nisso. Podemos agora chamar-lhes o que quisermos: ideia forte, inspiração súbita, inclinação, ordem, exortação, grito. As vozes do pensamento apresentam-se de forma inesperada. Canções, poemas, lengalengas, orações, vai lá saber quem está a falar contigo e o que pretende deveras.

Para Ludovico, as vozes diziam escreve, escreve a história desse deserdado do destino que quis superar-se mas acabou varado por duas lobotomias no campo de batalha da psiquiatria.

Já tinham contado a Calixto que as vozes fazem-se sempre ouvir. O que pode melhorar ou piorar é a importância que lhe damos. Em Granada e em Lisboa, no Telhal e no Manicómio Bombarda, irmãos de infortúnio passaram-lhe a mensagem: depois de uma sessão de eletrochoques, as vozes afastam-se, não desaparecem, mas ouvem-se mais ao longe. Às vezes até deixamos de perceber o que estão a dizer. Dizem bem? Dizem mal? Importa pouco. Importa menos. As vozes apagam-se com o nosso cansaço. Os tratamentos extenuantes quase nos matam deixam-nos derreados, prostrados, incapazes de perceber e muito menos de reagir às nossas vozes interiores.

Parece ser também muito importante a ressonância das vozes. Se são insistentes e intensas marcam mais, ecoam, regressam sempre; se são mais distantes confundem-se com outras, tornam-se bruaá seguindo pelos caminhos do esquecimento.

Uma das vozes que assombrava Calixto alertava-o para o tempo que estava a perder com médicos e enfermeiros, as quebras no vencimento, as faltas ao trabalho, a situação profissional que já fora tão feliz e promissora a resvalava agora, pouco a pouco, para o caos. E depois, Calixto, como vão sobreviver tu e a tua mulher? Acaba com essas mariquices e volta à praça. Este estado de coisas não pode prolongar-se muito mais.

No Boletim Clínico da Associação dos Empregados de Comércio que Ludovico diz ter lido, terão registado que teve alta a 19 de setembro e prosseguiu fazendo sessões de fisioterapia.

Apesar do alarme que as suas vozes interiores faziam soar, Calixto parecia agora poder voltar a dedicar-se ao protestantismo e ao esperanto, regressar ao trabalho e voltar a ter mão na sua vida. As vozes interiores que o impulsionavam pareciam poder coabitar; as que o alertavam para os perigos, fraquezas e ofensas tinham baixado de tom.

 

Nada que o bromural e uns banhos quentes não fossem capazes de debelar.

 

 

4. Má sorte

 

Calixto estava talhado para não ter sorte. Voltou a ser atropelado e a gastar o seu tempo com fisioterapias e internamentos. A venda de calçado continuava; outros vendedores circulavam entre São João da Madeira e Lisboa. Não esperavam por ele. A mulher e os filhos aguardavam que se pusesse melhor. Uma situação do arco da velha.

 

Imaginem que aquilo a que chamamos despropósitos (pôr-se subitamente a dançar, a cantar ou a assobiar) são deslizes do estado de vigília para uma semi-sonolência em que Calixto age aos nossos olhos como se estivesse acordado, mas, de facto, está a sonhar. Discurso incongruente, gestos e tiques estereotipados, resistência violenta às contrariedades.

 

Durante a madrugada chora e canta alternadamente; levanta-se e deita-se; tenta sair da enfermaria e por isso é frequentemente confinado ao colete a que popularmente chamavam camisa de forças. Ainda assim remexe-se, empurra a roupa da cama para o chão, solta impropérios e grunhidos. Onde estiver Calixto está o reino do desassossego.

 

Mas Calixto acorda e por vezes parece um outro homem. Razoável, racional e estável. Na consulta, mostra-se consciente da sua situação, guarda memória dos factos marcantes da sua vida, lugares, coisas, distâncias e demoras. Este é o Calixto desperto, acordado para os pensamentos que produz, aquietando as suas vozes interiores, respondendo com ironia a médicos e enfermeiros.

 

Ludovico anotou algures que Calixto tentava compreender a sua doença e concluira que se tratava de algo que não era permanente. Qualquer coisa que me dá e vai por aí fora. Estou a dormir ou estou acordado? Isto é o tempo cru ou estamos a sonhar acordados? Talvez as coisas assim se pudessem simplificar. Acorda Calixto! Estás a dar espetáculo. Não dizes coisa com coisa. Comporta-te. Mas não dá. Se está a dormir acordado, os sonhos que está a sonhar estão blindados. Não dá acordo de si. Amanhã, quando acordar, pode estar efetivamente desperto, falar da mulher e dos filhos, lamentar o tempo que está aqui a perder, pensar no escritório, na venda de calçado, e nas grandes causas do protestantismo e do esperanto.

 

Mas como Calixto estava calhado para não ter sorte, em janeiro de 1936, por indicação do psiquiatra do Manicómio Bombarda, dará entrada no Serviço de Neurologia de Santa Marta para ser operado. Foi a sua primeira leucotomia. Para a equipa de Egas Moniz foi um dos vinte casos que entraram na literatura da especialidade nesse mesmo verão, num livro dado à estampa por uma editora de Paris.

 

Calixto regressa ao Manicómio Bombarda, após a leucotomia, em meados de janeiro. Às manias de dançar, cantar e arrastar móveis somam-se agora as do repouso ereto (mesmo rodeado de gentes, senta-se muito direito, cabeça erguida, fecha os olhos e fica longo tempo imóvel naquela posição); e a da continência militar (sem razão aparente, detém-se, leva a mão direita à altura da testa, e perfila-se).

 

Solicita uma saída precária. Explica que, como a doença dele não é permanente, esta pode ser uma boa oportunidade para ir a casa por alguns dias. A condição de institucionalizado abate-se finalmente sobre ele. Duvida que esteja curado. Quer que, se tiver de voltar a ser internado, tudo seja simplificado. Em tempos, um enfermeiro acompanhou-o durante a sua saída precária. Agora tal não será necessário, mas ainda assim quer deixar tudo preparado. Não fala das suas causas, nem do esperanto, nem do protestantismo. Claro que se o assunto surgir em conversa com o médico, lá fica registado que sim, que se lembra perfeitamente dessas coisas, da mulher e dos filhos, dos endereços do seu escritório e dos clientes. Mas parece que coisas mais práticas lhe ocupam a atenção.

 

Diz claramente que se as coisas correrem mal quer ter a via de regresso desimpedida, de modo a regressar sem problemas ou atardamentos. Admite que aquele vai ser um território a que não poderá escapar por muito tempo. E assim será. Em vez da alta que em tempos ambicionou, contenta-se com uma licença.

 

Ludovico diz ter recolhido um testemunho em finais de março segundo o qual se lhe ouvira dizer: Agora sinto-me bem. Estive variado. Mas agora penso que já sou capaz de ir trabalhar na praça.

Lembra-se de ter estado em Granada, na secção dos dementes, e de ter saído curado, sem qualquer interferência da família.

É-lhe finalmente concedida a licença de ensaio no final de março. Em meados de abril está de volta, para se aconselhar acerca de um processo judicial que lhe foi movido por ter faltado à inspeção militar. Melhorou o aspeto e ganhou peso.

No final de maio dão-lhe alta. Alta a esperança, grandes a tristeza e o receio, como a esposa relata, segundo Ludovico, no seu grupo social, tanto tempo sem trabalhar e o tamanho do estigma que carrega só pode trazer dívidas, carências e desventuras. Quando se perde o trabalho e não se tem outros rendimentos, o poder de uma pessoa falece por inteiro.

Calixto, com esta alta, é devolvido a um mundo que deixou de reconhecê-lo.

 

 

5. As vozes interiores dos psiquiatras

 

Meu deus que diagnósticos são estes? Será que nos estamos a equivocar? Terá razão o Zbigniew? Não será a psiquiatria mais do que uma ideologia tecnicizada? Estará Calixto a deslizar para uma forma de esquizofrenia? Terá alucinações? Se ao menos nos pudesse explicar o que precede o click que o faz passar do modo normal para o regime perturbado das grandes tempestades emocionais. Que sabemos nós destes sopros, baforadas, acessos. Às vezes conversamos uns com os outros sobre a volatilidade dos nossos prognósticos, o irrisório das nossas terapêuticas, sobretudo os chamados tratamentos de último recurso. Quantos de nós olhámos com desconfiança e incredulidade para a leucotomia e seus resultados.

 

Que sabemos nós da tristeza que pode levar ao suicídio ou ao suicídio privativo dos que fingem continuar a viver, mas estão a chorar lágrimas de pedra para dentro. Imagem poética do filho de um psiquiatra que era, ao tempo, diretor clínico do Hospital Júlio de Matos.

 

Mas deveríamos nós ser contra a leucotomia só por não estarmos de acordo com os fundamentos que eram apresentados? ou por nos parecer que os resultados eram demasiado apimentados?

 

Ilídio escreverá, anos mais tarde, um artigo acerca do que testemunhou ao acompanhar e avaliar casos como o de Calixto. Recorda-se que quer ele quer muitos dos seus colegas não deram muito crédito a uma operação que consistia em destruir tecido nervoso com injeções de álcool absoluto. Pareceu-lhe bastante bárbaro e com propósitos incertos. Não entrou nesse tipo de pormenores no artigo que publicou. Lembrava-se perfeitamente de Calixto e das conversas que tivera com ele.

 

Finalmente Calixto fora diagnosticado com uma esquizofrenia na forma catatónica e melhorado da agitação psicomotora. Ora, da agitação, Calixto melhorava ciclicamente; da forma catatónica da esquizofrenia pouco se sabia…

 

Amigos?

 

É claro que no hospital psiquiátrico não se forjam relações como na tropa ou no trabalho. Mas Agostinho conhecera Calixto na Casa de Saúde do Telhal e voltara a encontrá-lo em Rilhafoles. Por coincidência ouvira também algumas réstias das conversas que Calixto mantivera com um irmão de São João de Deus, no Telhal; com um psiquiatra que lhe pareceu ser o próprio diretor do Manicómio Bombarda e com o próprio chefe do serviço de neurologia de Santa Marta, alguns dias após a leucotomia que lá lhe ministraram. Pois sim, o olhar desconfiado, a suspeita de que podia tratar-se de pessoal do próprio hospital ou mesmo de um familiar de um alienado em visita, tornou difícil o contacto. Apesar disso, Agostinho contou a Ludovico que conseguira chegar à fala com Calixto em duas ocasiões, depois de muito o observar e de se informar sobre ele.

 

O frade de São João de Deus, em conciliábulo raro com Calixto concedera que quanto às indulgências Calixto poderia ter uma certa razão. A sua visão reformista da igreja bem que podia ser subscrita por eles, Irmãos de São João de Deus, ascetas e austeros, afastados dos mais espaventosos luxos da Santa Sé. Olhai o que corre debaixo do Sol. Tudo é vaidade e tempo perdido. Apesar de Calixto não ser um entusiasta do Eclesiastes e de uma vez por outra ostentar a sua vaidadezinha, entendia-se bem com o espírito pastoral e as devoções dos irmãos do Telhal. Chegara em hora aziaga; partira em tempo melhor.

 

Já com os psiquiatras do Manicómio Bombarda e com os médicos de Santa Marta, Calixto foi um pouco mais vaidoso, alardeando um conhecimento de línguas estrangeiras (francês, inglês e castelhano) para além do esperanto de que muitos lhe gabavam a mestria. Mesmo quando se encontrava mais calmo e controlado, tratava os seus interlocutores sempre com aquela ironia desdenhosa destinada a colocá-lo num plano superior, humilhado naquele lugar, como quem diz, o meu mundo não é deste reino. O homem quis superar-se, mas a vida trocou-lhe as voltas.

 

Mais tarde, Calixto será transferido para o Hospital Júlio de Matos, em ciclos de melhorias e piorias que se repetiram após a primeira leucotomia que o deixou praticamente na mesma, para pior. No entra e sai que passou a ser o seu destino terapêutico, acabou por ser encaminhado, em 1948, para mais uma lobotomia (mais uma) de que não se percebe bem a indicação, mas era assim naquele tempo, havia muitas lobotomias a fazer e a coincidência de Calixto já contar com uma outra no cardápio, não queria dizer nada, tendo em conta, ainda por cima, que a primeira fora sui generis, a álcool, vejam bem.

 

Olha as cicatrizes. Este já foi operado antes. Procura no processo clínico. É verdade. Cá está. Pertence ao primeiro conjunto. Ope lá.

 

Às vezes, Calixto dizia-o com alguma graça: para me curarem puseram-me mais uma doença. Referia-se à malarioterapia que consistia na inoculação de plasmódio extraído do sangue de doentes infetados com malária para que as febres altas que se seguiam pudessem eliminar as espiroquetas da sífilis evitando que o paciente fosse desta para melhor. Assim era, de facto. Apesar de Calixto não ter contraído a sífilis, havia uma mal definida esperança de que aquele tratamento que desencadeava febres altas, pudesse fazer algum bem. Sabe-se lá. Para doenças misteriosas e descontroladas, tratamentos desencaminhados, e vamos lá ver no que dá.

 

E assim foi. A partir daquela altura, Calixto passou a ser acompanhado por um paludismo que o prostrava, e as crises cíclicas da malária vieram juntar-se às apoquentações que o inundavam. Andar o mundo às avessas já é o que é, mas então com febrões de derrubar elefantes façam lá o favor de se afigurar.

 

Depois as coisas pioraram. Calixto passou a ter quase quotidianamente, e às vezes mais do que uma vez por dia, ataques epiléticos, brutais e arrasadores que o deixavam prostrado por horas a fio. Nos anos seguintes, os enfermeiros descreveram-no em gatismo, arrastando-se pela enfermaria, rasgando lençóis e a própria roupa do corpo, chorando ou cantando, proferindo frases ininteligíveis pelo meio, perdido, aflito, afundado em sentimentos avassaladores.

 

Na Calçada da Tapada, à Ajuda, a casa que foi dele guarda num canto da despensa os seus haveres, caixas de sapatos tornadas arquivos, contendo cartas, receitas, bulas de medicamentos. Uma bíblia, sebentas de esperanto, recortes de jornais, bilhetes-postais e catálogos de calçado de São João da Madeira.

 

Ninguém sabe que vida vai viver ou de que morte vai morrer, mas agora é diferente. Começa-se a divisar na linha do horizonte algo muito semelhante a um destino. O destino de um homem que queria superar-se, levar a boa nova aos outros, viajar, ver e partilhar com outros as bem-aventuranças de um mundo efervescente, e acabou engolido pelo lado escuro da terra, perdendo-se em vez de encontrar um caminho para cumprir o que supunha ser a sua missão.

 

Calixto convenceu-se de que poderia melhorar o mundo libertando os homens da visão única, superando a solidão dos pensamentos fechados em torno da tradição indiscutida. Segundo ele, havia mais mundo para além dos mundos pequeninos de cada um de nós. O olhar solto seria o instrumento; o esperanto seria a ponte; o livre exame, a condição de base.

 

Não sabemos se se enganou ou não.

 

Em fevereiro de 1964 deixou-nos.

 

O somnifene perdeu eficácia para debelar as insónias; os eletrochoques foram deixando de surtir efeito; e a ergoterapia não conseguia cativá-lo, nem no corte e ajuntamento da lenha, nem no papel. E as duas leucotomias (uma a álcool, outra superior) deixaram-lhe, pelo menos, cicatrizes visíveis dentro e fora da cabeça sendo um dó de alma compreender o que lhe fizeram de facto.

 

Aí está. Nem sempre acaba bem o que começa com tanta esperança e boa vontade.

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